“The Witness” é um videojogo que foi lançado no final de Janeiro do presente ano de 2016, e é invulgar o suficiente para eu achar que merece uma discussão mais extensa do que é habitual. Este artigo é, em parte, o meu contributo para essa discussão.
Mas antes disso, vou fazer uma pequena análise ao jogo, para que quem não o tenha jogado possa perceber rápidamente se é jogo para si ou não. Depois passarei para observações mais profundas acerca do conteúdo do jogo – se bem que não vou estragar nenhuma surpresa, portanto quem tiver interesse pode continuar a ler em segurança mesmo antes de o jogar.
The Witness: Micro Análise
The Witness é um jogo de quebra-cabeças. O jogador encontra-se numa ilha deserta onde explora várias estruturas – castelos, ruínas, uma pequena aldeia – nas quais consegue penetrar cada vez mais profundamente através da resolução de ditos quebra-cabeças, que funcionam como trancas à progressão.
O jogo é semi aberto, ou seja, quando o jogador “encrava” numa das regiões, pode sempre tentar resolver os quebra-cabeças de outra para desanuviar. Os quebra-cabeças em si seguem sempre o mesmo esquema: são labirintos em que o jogador, carregando num ponto de partida, deve descrever uma linha até ao ponto de saída, tendo em conta regras que são definidas pelos símbolos que adornam o labirinto.
Há muitos destes símbolos, o que resulta numa quantidade incrível e cada vez mais complexa de variações do tema inicialmente simples, e no entanto o jogo introduz as novas regras com uma suavidade de progressão tão estudada, que é raro o jogador se sentir completamente perdido.
De facto, entre as muitas qualidades deste jogo, a mais saliente é a sua capacidade de comunicar conceitos complexos ao jogador unicamente através da progressão dos quebra-cabeças. Não há uma única linha de texto explicativo, e nunca faz falta.
O que não há é uma narrativa concreta. Embora existam na ilha várias pistas em relação à origem do espaço e outras tantas que nos fazem supor que se deu algum tipo de acontecimento antes da chegada do jogador, a história deste jogo será sempre construída pelo próprio jogador com base na sua observação, nunca confirmada ou desmentida pelo jogo.
Portando, este é um jogo para quem queira exercitar a sua capacidade de observação, lógica e dedução, num cenário tranquilo e agradável. Não é um jogo para quem busque a resolução concreta para um mistério, ou o desenrolar e clímax de uma narrativa convencional.
Um Curto Preâmbulo Acerca da Base da Minha Interpretação
O ser humano capta a informação do mundo que o rodeia através dos sentidos, e organiza-a com base em experiência prévia. Isto é, cada um de nós interpreta a realidade através de uma lente pessoal.
Uma obra como um filme, um livro, ou um videojogo poderá dar mais ou menos orientação em relação à forma como espera ser interpretado. Se o Mario está a ir ao castelo para salvar a princesa, ele está a ir ao castelo para salvar a princesa. Pessoas diferentes podem-lhe atribuir motivações diferentes e níveis diferentes de mérito, mas é incontestável que Mario está a ir ao castelo para salvar a princesa, a menos que neguemos a realidade básica do jogo.
The Witness não dá praticamente orientação nenhuma, e portanto a minha interpretação – baseada no meu interesse e estudo superficial de coisas como o método cientifico, o taoismo, o budismo zen e a mitologia cristã – será bastante diferente de alguém que o interpreta através do prisma do conhecimento da literatura e arte ocidental, do sofismo e retórica, áreas acerca das quais o meu conhecimento é medíocre.
O que o leitor deve entender é que é natural – e mesmo desejado – que não alcance as mesmas conclusões que eu à medida que joga, e que conclusões radicalmente diferentes alcançadas por outros jogadores podem ser igualmente válidas.
De Que Trata The Witness, Afinal?
Apercebi-me de três temas contidos em The Witness, temas que se foram desenvolvendo gradualmente, o primeiro dando origem ao segundo, e depois surgindo o terceiro.
O primeiro e mais abrangente é que este é um jogo acerca de aprender. Como referido acima, este é um jogo que vai contra o que é habitual no meio, e não providencia instruções. Mas também não pretende ser obscuro e intransponível.
O jogo oferece, nos primeiros momentos, um desafio básico o suficiente para alguém com nível de conhecimento 0 resolver, e vai aumentando o desafio de forma tão suave que é quase impossível não se perceber como resolver o segundo, e o terceiro, e assim por diante.
Até que se chega – digamos – ao vigésimo, e com algum esforço se conjugam todas as regras que se aprenderam até chegar a esse momento, e se resolve esse também. E há aqui um pormenor fácil de escapar mas muito importante: antes de resolver os precedentes dezanove enigmas, esse que agora se acabou de resolver seria impossível, indecifrável.
Neste momento, a resolução pode ter exigido um pouco de esforço cognitivo, mas o jogador tinha sido armado com o vocabulário necessário para o fazer. Há dezanove enigmas atrás, o jogador não sabia ler nem escrever, era impossível resolvê-lo. Há dez enigmas atrás, o jogador só sabia soletrar.
The Witness apresenta-se como uma simulação do processo ideal de aprendizagem de uma língua. Aprendem-se as vogais. Depois os ditongos, Depois as consoantes, e depois as combinações mais habituais, as palavras monossilábicas. E assim por diante.
Ao mesmo tempo, e à medida que se torna mais complexo, o jogo transita para uma simulação da aplicação do método cientifico: o jogador observa um enigma e o ambiente em que ele se encontra; através da observação e da experiência prévia (o vocabulário que construiu) formula uma hipótese. Finalmente, testa a hipótese. Se o resultado não é o esperado, vê-se forçado a formular uma nova hipótese, o que pode exigir o questionar da validade da interpretação de experiências prévias.
É através desta sequência que se aprende, e se aprimora, qualquer disciplina. Desde o desporto às artes visuais à filosofia, o método é válido, e é esta a primeira metáfora de The Witness.
A sua primeira mensagem: “Podes aprender e fazer aquilo que desejares. Tens as ferramentas para tal, só te esqueceste de como as usar. Eu estou aqui para te lembrar.”
Para aqueles que se esqueceram como se aprende, problema endémico à nossa sociedade, em que as pessoas saem da escola e decidem que já se acabou o período de aprendizado (“Burro velho não aprende línguas.” etc), The Witness está aqui para nos ensinar a aprender.
Mas há um segundo tema neste jogo, mais profundo, e à primeira vista, não tão bem integrado nas mecânicas. É um terma que é evidenciado pelas gravações áudio que se podem encontrar escondidas entre os cenários, citações de pensadores, filósofos, cientistas e lideres espirituais. Com algumas variações ocasionais, estas gravações começam a descrever os contornos de uma dualidade de pensamento, um “confronto” entre o cientifico e o espiritual.
Inicialmente, acredito que a maioria dos jogadores se sinta inclinado a tomar com mais seriedade e interesse as observações cientificas e filosóficas, e encare com alguma confusão os pensamentos espirituais e esotéricos. Afinal de contas, a progressão do jogo baseia-se numa aplicação mecanicista do método cientifico. O primeiro par de temáticas, estamos a viver em primeira mão; o segundo, são conceitos pouco concretos que nos estão a ser apresentados.
É um salto intelectual considerável que The Witness exige do jogador a este ponto, e no entanto, tal como o guiou através da progressão na complexidade dos enigmas, também fez o possível para que o jogador mais atento seja capaz de o dar.
Falo do que é chamado no Taoismo de “O Caminho do Meio”, ou, para ter uma expressão mais moderna, “Integração de Paradoxos”, e é esta a segunda camada de significado de The Witness.
Um dos conceitos do Taoismo (que possivelmente terá sido cooptado pelo Budismo Zen; o meu conhecimento deste ultimo não é abrangente suficiente para afirmar se sim ou se não) é que o caminho para o reconhecimento e aproveitamento total da realidade encontra-se através do desenvolvimento e aceitação da capacidade de conter paradoxos em nós mesmos.
Em suma: negar a dualidade do binômio ciência / espiritualidade, e aceitá-los como um todo. Não um conflito, nem mesmo duas faces de uma moeda, mas sim a sobreposição de ambas numa única realidade válida.
A determinado ponto em The Witness – e é determinado ponto que não vou revelar, e é possível “acabar” o jogo sem chegar a ele, pois é opcional, mas acredito que a maioria das pessoas que jogaram e estejam a ler estas linhas saibam do que estou a falar – a lógica mecanicista não basta.
É necessária e indispensável, mas é preciso algo mais, algo a que o jogo aludiu muito suavemente em alguns enigmas anteriores mas que não faz sentido se considerarmos uma perspectiva unicamente lógica. É preciso uma faísca, um momento de iluminação em que olhamos ao que está perante nós, pensamos “poque não?” “será que?” ou uma variante semelhante, e, quase por instinto, fazemos algo que não faz sentido mas resulta.
Acabámos de ter aquilo que os escritos orientais definem como “um momento de iluminação”, e The Witness acabou de nos ensinar a integrar paradoxos. A combinar, numa visão integrada da realidade, duas coisas que a nossa educação ocidental nos ensinou a ver como opostos intocáveis.
Obviamente, não quero estar aqui a fazer a hipérbole de que The Witness é o caminho para a iluminação. Mas considero que é mais uma num leque restrito de obras que têm o potencial de nos ajudar a ultrapassar a barreira do pensamento convencional e nos fazer vislumbrar – através do buraco da fechadura – um melhor entendimento do universo.
Depois de dado este passo (salto), as gravações mais esótericas passam a fazer mais sentido, tornam-se complementos em vez de contrapontos. É perfeitamente possível ignorar tudo isto, claro, mas não deixa de ser essa a segunda metáfora de The Witness.
A sua segunda mensagem será: “Há coisas para além do teu entendimento atual, e só as poderás alcançar se mudares a base da tua forma de pensar. Eu não te posso mostrar, mas estou aqui para que o possas descobrir. E uma vez que o vejas, estará contigo para sempre.”
De facto, desafio qualquer pessoa que tenha chegado a este ponto em The Witness a dizer que a sua maneira de olhar para o (aspecto físico) do mundo não foi alterada para sempre, da mesma forma que, depois de acabar dez vezes o Metal Gear Solid original, eu não consigo ver uma câmera de segurança sem instintivamente avaliar o ponto morto do cone de visualização.
Dos três temas de The Witness, penso que este é o que é tratado de forma menos habilidosa. Mas por outro lado, não me consigo lembrar nenhuma obra que o consiga fazer com mais elegância.
Para além das praticas inerentes a tradições marciais e espirituais, é difícil demonstrar que se pode mudar fundamentalmente a forma como o cérebro humano percebe a realidade. Os vídeo jogos, por exigirem participação activa por parte do consumidor, parecem-me mais adequados do que a maioria dos meios, e em retrospectiva, admira-me de que Blow tenha sido o primeiro a usar um vídeo jogo como veículo para transmitir tal mensagem.
E qual será o terceiro tema? Bem, o terceiro tema é a unificação dos dois primeiros. Depois de estabelecer que existe um método para aprender qualquer coisa, e que existe aquela forma de perceber a realidade que algumas tradições espirituais apelidam de “iluminação”, The Witness segue a sequencia natural das coisas e apresenta-se como, no final de contas, uma ferramenta para alcançar a iluminação.
Compreendo que esta afirmação possa mais uma vez parecer hiperbólica, de alguma forma até provocante, mas isso poderá ser função da carga intelectual, talvez até mistica, que o leitor atribuí à palavra “iluminação”.
Em termos de filosofia oriental, “iluminação”, a tal percepção unificada da realidade, é um objectivo desafiante mas alcançável pelo comum mortal.
Uma compreensão superficial do conceito leva-nos a pensar que iluminados eram Buda, Jesus, Maomé, etc – mas qualquer estudo preliminar de filosofia oriental revela que há várias pessoas vivas e a caminhar entre nós que alcançaram esse ideal de ser, e que a maioria das pessoas pode trabalhar para o alcançar.
Os caminhos para a iluminação são vários, e é por isso que há várias tradições espirituais orientais com o mesmo objectivo mas métodos de operar radicalmente diferentes. Uma gravação aúdio numa das zonas “finais” de The Witness fala um pouco acerca de duas metodologias utilizadas em escolas distintas de Budismo Zen; o Shikantaza e a utilização de Koan.
Não me pretendo alongar muito sobre isto, mas a discussão exige uma introdução rápida (e muito simplificada / incompleta) a estes dois conceitos.
Shinkantaza é a pratica de estar simplesmente sentado (de uma forma mais ou menos protocolar) e presente no momento, sem focar a atenção em nada senão no estar sentado no presente momento e local (e especialmente não nos pensamentos que possam surgir).
A utilização de Koan é o oposto, é focar incessantemente num conceito ou enigma em detrimento de tudo o resto. Nota importante: mais uma vez, isto é uma grande simplificação dos conceitos, e não resiste a escrutínio.
No caso do primeiro (shinkantaza), o sujeito alcançaria a iluminação simplesmente através da pratica de estar presente. Parece simples, mas não o é. Qualquer pessoa que o tente verificará que a mente parece incapaz de não vaguear, e que são precisos meses até alcançar alguma semelhança de controlo, e que o próprio estabelecer de controlo impede a pessoa de estar realmente presente. É mais um paradoxo a ser integrado: fazer esforço sem esforço.
No caso do segundo, a ideia é utilizar expressões (os Koan) que, ao ser ponderadas, levem à mesma integração de paradoxos que foi explicada acima. A sequência de “momentos iluminados” como aquele que o jogador teve da primeira vez que resolveu “aquele enigma” supostamente conduzirá ao almejado estado de iluminação.
The Witness tenta integrar estes conceitos nas suas mecânicas.
Pela sua própria natureza, todos os jogos são exímios em fazer-nos existir no presente, tal como os desportos e as artes marciais.
Embora hajam jogos (por exemplo, os de estratégia) que nos obrigam a ponderar e planear o futuro, ou considerar o passado, na maioria dos casos jogar significa viver a experiência momento a momento, algo que é intrinsecamente agradável ao ser humano e que, por alguma razão, é mais difícil de fazer durante a sua vida mundana – algo que o conceito de “iluminação” pretende recuperar.
Qualquer jogador aficionado de Geometry Wars ou Pac-Man Championship Edition entende isto de forma instintiva. O ritmo desses jogos não permite à mente habitar senão o momento presente, e exige uma fusão entre o pensamento e acção. Um practicante habitual de Shinkantaza que se decida dedicar a estar entre os melhores do mundo em Geometry Wars, e vice-versa, descobrirá sensações familiares.
The Witness, sendo uma experiência muito mais sedada, procura conduzir o jogador a esse estado mental não através da acção frenética mas através da contemplação do mundo natural. É essa a razão do cuidado com que a ilha e as instalações nela presentes estão construídas com tamanha atenção ao detalhe, embora a maioria desses detalhes sejam irrelevantes para o jogo em si. O objectivo não é o de comunicar mecânicas de jogo, mas sim o de integrar o jogador no ambiente e fazer a sua consciência penetrar no mundo de jogo.
Mas não há duvida que é através dos enigmas que The Witness faz a sua mais obvia tentativa de conduzir à iluminação.
Pretendem estes ser koan digitais, os melhores de entre eles (poucos, admita-se, mas não é este um demérito a Blow, pois não seria realista pensar que um homem em sete anos seria capaz de criar quantidade de enigmas equivalente ao que séculos de pratica espiritual alcançaram) capazes de despertar – não ensinar – a mente ao conceito de não-dualidade, de integração de paradoxos, que é o passo essencial para a iluminação.
É esta a terceira metáfora de The Witness. É – tal como os Koan, tal como os diversos tipos de meditação, tal como algumas artes marciais, tal como algumas praticas religiosas ocidentais, tal como algumas escolas filosóficas – mais uma ferramenta que se pode utilizar no caminho para essa percepção apurada da realidade.
A sua terceira mensagem é: “Mostrei-te aquilo de que és capaz. Mostrei-te o que há a descobrir para lá do véu. Dei-te uma bussola. Agora, faz o que entenderes.”