Como seria jogar Assassin’s Creed II como um pacifista com respeito pela vida do próximo?
Nota: O presente artigo foi publicado no passado no blog “A Arcada”, uma colaboração de vários escritores portugueses apaixonados por video jogos. Tendo o projecto sido descontinuado, e sendo eu o detentor dos direitos desta peça escrita por mim, decidi republicá-la na ene3.
Assassin’s Creed II. Parece que as pessoas que me andaram anos a dizer que era um grande jogo tinham razão! Quem diria?
Pouco depois de ter começado a jogar, apaixonei-me. Adorei a representação da época, adorei a extensão e caraterização das regiões, e adorei o leque de armas que tinha à disposição para executar os meus assassinatos.
A única coisa que não gostei é que este é – tal como a maioria dos jogos actuais – um jogo para psicopatas.
Para mim, a fantasia de ser um assassino não é a fantasia de matar um homem a sangue-frio depois de deixar um rasto de cadáveres desde o meu ponto de partida até à sua porta da frente. Há alturas em que quero essa sensação, sim, e nesse caso vou jogar um FPS, que acaba por ser um jogo de assassinato em massa.
Não, para mim, a fantasia de ser um assassino é aquela fantasia retratada por Hitman, por Splinter Cell: é a de ser o profissional que entra, mata o alvo, e saí sem ninguém se dar conta.
Compreendo que Assassins’ Creed não deve ser o jogo que eu quero, mas sim o jogo que os seus criadores querem. Aceito isso, e compreendo que nos assassinatos principais, hajam algumas limitações na liberdade, de forma a engendrar sequências de fuga emocionantes e afins.
É perfeitamente aceitável, não sou defensor purista do estilo de jogo “100% aberto”.
E no entanto, num jogo com tanta liberdade de movimento, nunca me senti muito bem em relação a matar tantos capangas dos meus alvos.
A grande maioria destes parecem ser mercenários contratados, ou soldados da guarda das cidades – gente normal que está a fazer o seu trabalho e que no fim do dia vai beber um copo com os amigos, brincar um pouco com os filhos no canal, dar mimos à esposa debaixo de uma arcada florentina.
É gente que está ali para impedir que arruaceiros escalem às varandas e roubem as jóias alheias, não estão à espera de, nem preparados para, enfrentar uma máquina de matar completamente artilhada!
Então, inicialmente, tentei esgueirar-me pelas sombras, evitar as suas faixas de visão. Só que Assassins’ Creed II não foi feito com furtividade em mente. Há muitos espaços, muitas ocasiões, em que não há uma forma de chegar a onde tenho que chegar sem ser visto; ser visto inicia uma perseguição que muitas vezes não é possível de iludir sem me afastar muito do objectivo.
Frustrado, voltei a seguir o modelo mais óbvio: matar silenciosamente os meus inimigos, um a um se possível, até chegar ao alvo principal. Joguei assim umas belas horas. Até que se deu um acidente fortuito:
Depois de uma fuga falhada, encontrei-me rodeado de soldados – larguei uma bomba de fumo (uma das poucas ferramentas não-letais à minha disposição) e comecei a esfaquear os inimigos atordoados. Quão distante estava eu da minha origem pacifista.
Por engano, carreguei no botão que me fazia largar a arma e atacar ao murro. Até aqui, o jogo só me tinha incentivado a usar isto em missões especificas, em que uma luta com punhos acabava sempre com a rendição do adversário.
Qual não é o meu espanto quando o ultimo dos soldados cai por terra, fica no chão a rebolar-se e a contar as nódoas negras, claramente vivo mas fora de combate – e o jogo dá a perseguição como terminada e me permite continuar a avançar em direcção à minha presa!
Que revelação! De repente, passou a fazer muito mais sentido a manobra de desarmar um adversário, em vez de simplesmente bloquear e contra-atacar com a minha arma. Consegui assim voltar a ser o honrado assassino da minha fantasia, o profissional que matava alguém que não era um alvo apenas como último recurso.
Qual versão italiana de Bruce Lee ou Jackie Chan, os meus adversários eram rapidamente desarmados, as suas armas atiradas para o chão, e de seguida postos KO pelas minhas habilidades marciais.
É certo, algumas missões continuaram a exigir que eu matasse mais do que o meu alvo principal, mas eu consigo viver com isso – nem sempre na vida real temos acesso à escolha que queremos.
O que interessa é que de repente, o jogo mostrou-me uma forma de humanizar muito mais o protagonista, e de projectar parcialmente os meus princípios sobre ele. Não só isso, o jogo tornou-se mais desafiante: sem usar armas, de poucos combates saio ileso.
E finalmente, agora que já não mato alguém de 5 em 5 minutos, cada assassinato tornou-se algo com muito mais impacto. Quando decido que alguém tem que morrer, estou a tomar uma decisão com peso, porque é algo que, normalmente, não faço.
E fico também agradado com a sensação de que estou a criar muito menos viúvas virtuais.